Por que chamamos de “muleta emocional”?
Na clínica, chamamos de muleta emocional todo recurso usado para anestesiar angústias, preencher vazios, adiar o contato com o que dói ou com o que não tem nome ainda. O smartphone cumpre esse papel com uma eficiência inédita: está sempre à mão, oferece estímulos imediatos e “cola” nos afetos difíceis (tédio, solidão, ansiedade), funcionando como um objeto transicional moderno — algo entre eu e o outro que apazigua e, ao mesmo tempo, captura. Em termos de Winnicott, ele opera nessa “área intermediária” que liga dentro e fora; quando hipertrofiado, pode favorecer o falso self e empobrecer o brincar criativo. Já na chave de Bion, o aparelho oferece uma pseudocontenção: alivia rapidamente, mas curto-circuita a função alfa, isto é, a transformação das experiências brutas em pensamento simbólico. (Winnicott, 1953/1971; Bion, 1962.)
O que a ciência tem mostrado
- Associações consistentes com sofrimento psíquico. Revisões sistemáticas e meta-análises apontam que o uso problemático de smartphone (PSU) se associa a ansiedade, depressão, estresse e pior sono. Essas relações aparecem em populações grandes e diversas (adolescentes e adultos).
- Sono e luz azul. Há boa evidência de que o uso noturno, pela exposição à luz de curto comprimento de onda, suprime melatonina e piora a qualidade do sono, o que retroalimenta irritabilidade e labilidade afetiva no dia seguinte.
- FOMO e regulação emocional. Estudos indicam que o medo de ficar por fora (FOMO) e a evitação de afetos mediam parte do vínculo entre PSU e sintomas ansiosos/depressivos: desbloqueamos para “acalmar”, mas reforçamos o ciclo.
- “Vício” ou mau uso? A literatura alerta: “dependência de smartphone” não é diagnóstico formal; é mais rigoroso falar em uso problemático/maladaptativo. Isso evita rótulos e mantém o foco nos funcionamentos subjacentes (ansiedade, humor, impulsividade, FOMO).
- Nomofobia (medo de ficar sem o telefone). O questionário NMP-Q é a medida mais usada; meta-análises confirmam boa consistência interna e prevalências relevantes de sintomas leves a severos em amostras diversas.
Nota importante: as associações são robustas, mas não implicam causalidade única; em muitos casos, sofrimento psíquico prévio predispõe ao uso de escape, e o ciclo se mantém.
Sinais clínicos de que o aparelho virou muleta
- Desbloqueio automático diante de qualquer afeto incômodo (silêncio, espera, início de tristeza).
- Irritabilidade desproporcional quando longe do telefone (nomofobia).
- Acordar/pegar no sono com a tela e sensação de “mente elétrica” na cama.
- Checagens compulsivas em situações de intimidade (mesa, consulta, reunião), como defesa contra a presença do outro.
- Dificuldade de brincar/pensar sozinho, substituindo devaneio por rolagem infinita.
Custos psíquicos quando a muleta domina
- Empobrecimento da simbolização: menos espaço para “sonhar acordado” e metabolizar experiências, como descreve Bion; sobra ação e falta elaboração.
- Desalojamento do brincar criativo: o aparelho como objeto transicional hegemônico ocupa o lugar do “entre” (eu-mundo), endurecendo o self.
- Arquitetura do sono e humor: privação/fragmentação do sono alimenta círculo de ansiedade e reatividade emocional no dia seguinte.
O que a psicanálise oferece (sem moralismo tecnológico)
- Nomear a função do gesto. Em análise, investigamos para que serve o gesto de desbloquear: o que ele alivia? que cena interna evita? A interpretação nasce do uso concreto do aparelho — não do aparelho em si.
- Reinstalar a contenção. Reconstruir, na transferência, uma experiência de contenção (Bion) que permita tolerar e pensar o afeto antes do ato.
- Reabrir o espaço transicional. Favorecer micro-rituais off-screen que devolvam brincadeira, escrita, devaneio, ampliando o “entre” (Winnicott).
Experimentos práticos de “higiene psíquico-digital”
Sem moralismo, com curiosidade clínica:
- Diário dos desbloqueios (1 semana): sempre que pegar o telefone, anote “o que eu estava sentindo/pensando um segundo antes?”; observe padrões (tédio, ansiedade de performance, solidão).
- Janelas de presença: instituir bolsões de 50 minutos por manhã/tarde sem notificações e sem o aparelho à vista (caixa/bolsa em outro cômodo).